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ApontamentosParaUmMelhorEntendimentoDaSolidão

 

O Ritual da Poesia

 


 

Linha 1

 

 

Responda por favor às minhas perguntas.

O que via do outro lado das grades do colégio?

- Roma Renascentista.

(Capital do Imperio Bizantino. Cidade de Constantino.)

 

Em que acorda a pensar?

- Em Constantinopla.

 

Onde se imagina daqui a três anos?

- Na Crimeia.

 

Qual é a memória que mais preserva?

- Não tenho memória. Só preservo nomes.

 

O que dirias do teu passado nesse caso?

- Que está por acontecer.

 

Diga-me três sentimentos que o caracterizem.

- As pessoas que partiram.

 

Isso são memórias...

- Não. São sentimentos de partida.

 

Se as pessoas partiram, estamos a falar do que aconteceu antes deste momento?

- As pessoas estão constantemente a partir, sinto isto todos os dias.

 

O que fez a semana passada?

- Não me recordo, não existe.

 

Uma imagem sobressaia?

- A vida que se perdeu no mar aberto.

 

Tem medo da morte?

- Não sei o que é.

 

Do que tem medo?

- Da espera.

 

O que o acalma?

- A exaustão.

 

O que lhe dá prazer?

- Pintores espanhóis e romances declarados.

 

Diga-me um valor que conserve.

- A saudade.

 

De quem ou do quê?

- Da arte antiga, calçadas de pedra, tribos da américa do sul... Das fontes abandonadas pelos impérios, a fatalidade do acaso... sinto tanta falta da grande beleza...

 

Onde encontra a expressão máxima do belo?

- No fundo.

 

Como lida com a mediocridade?

- Mais ou menos.

 

E com as contrariedades?

- Como quais por exemplo?

 

 

Por exemplo: Tem que passar um quadro que veio de Constantinopla, pelas grades do colégio. O portão não abre, ninguém se lembra porquê. A saudade é uma arte antiga.

 

O mensageiro está exausto debaixo do mar aberto que cai do céu, a calçada de pedra escorregadia. Ele não se aproxima, no fundo está à espera de um gesto de consentimento, que compreendam o que está por acontecer ou que simplesmente saibam o nome da vida que se perdeu. O romance está declarado. Bem como a fatalidade do acaso.

 

 

 

 









 

Linha 1

 

Quem terá lavado aqueles vidros?

Estar numa festa a olhar fixamente para uma janela e perguntar-me a razão pela qual os vidros estão tão sujos não é normal.

Devo estar a chocar alguma. Será gripe?

Hoje tinha uma consulta no psicólogo e não fui. Não me lembrei...

Sabes onde me apetecia estar agora?

Gostava de estar na escola e de ouvir o toque para sair.

Fim de tarde na mocidade extremamente imberbe

Bulício quase sempre de entardecer

Estremecem os orfanatos,

Estremecem os colégios internos.

 

A D. Perpétua era a secretária do psicólogo

Lá vai ela do outro lado da rua

Na cadeira de rodas eléctrica

Lado a lado

A caminho do consultório.

 

Estavas a dormir?

Desculpa se te acordei.

Hoje acordei com uma saudade imensa de não sei muito bem o quê...

Como se eu não estivesse dentro de mim

Queres ir para a praia correr a cavalo¿

 

Silêncio

 

Estás a ouvir¿

O galope das musas pelos areais clandestinos.

Dá-me um segundo, tenho alguém na outra linha.

 


 

Linha 2

 

Diz ela assim que se muda de linha:

  • "Do you mind if I smoke?

 

It won't affect the test. All right, I'm going to ask you a series of questions. Just relax and answer them as simply as you can. -- It's your birthday. Someone gives you a calfskin wallet.

  • I wouldn't accept it. Also, I'd report the person who gave it to me to the police.

You've got a little boy. He shows you his butterfly collection plus the killing jar.

  • I'd take him to the doctor.

You're watching television. Suddenly you realize there's a wasp crawling on your arm.

  • I'd kill it.

You're reading a magazine. You come across a full page nude photo of a girl.

  • Is this testing whether I'm a replicant or a lesbian, Mr. Deckard?

Just answer the questions, please -- You show it to your husband. He likes it so much he hangs it on your bedroom wall.

  • I wouldn't let him.

Why not?

  • I should be enough for him."

 

[audio fades out and in, time passes.]

 

Linha 1

 

Desculpa, era um casting para um filme antigo.

Está um barulho infernal nesta festa

Eu nem queria vir.

Sabes como é, alguém te puxa

Julgando que sabe do que tu precisas.

Não sei se fiz bem em ligar-te.

Estavas a dormir¿

 

Ouve-se do outro lado da linha:

- Estava. A meio de um sonho estranhíssimo. Uma mulher tomava os meus comprimidos do estômago em barda para se tentar matar. Isto passa-se num quarto, acho eu. Eu estou em outra divisão, mas consigo ver o que se passa com ela, não sei se por uma porta semi aberta talvez, se pela onipresença comum dos sonhos. Vou até onde ela está, ela despeja os comprimidos bem lá do alto, Está desesperada. Digo-lhe qualquer coisa como, não vai dar para te matares com omeprazol.

Falo, mas não tenho som. Não como o que estás a ouvir agora. Não o som com que estamos a conversar. Enfim, é difícil de explicar.

Ela fica furiosa quando lhe falo dos comprimidos. Começa a chorar, aos gritos e...

E... a atirar-me berlindes com toda a força.

 

Responde a mulher:

Devias ter dito qualquer coisa do gênero, achas bem alguém cometer suicídio com os meus comprimidos¿ Fazes questão de te referir a ela como ‘alguém’ para que se saiba que tens mais que fazer.

Achas decente sua desequilibrada¿! Perguntas tu.

Acho que nunca tinha usado esta palavra antes

Cometer.

 

Sabes aquelas situações em que gostavas de ter dito uma data de coisa de outra maneira¿

Isso acontece-me muito nos sonhos. Querer dizer o que não disse...

É como nos sonhos?

Desculpa se te acordei.

 

Agora é tarde não é?

Precisava de desabafar, esta festa está a destruir o que resta de mim.

Desta vez não foste à varanda ver se saía a correr pelas ruas dos Anjos ou se ficava a chorar nas escadas do prédio.

Prometi a mim mesma que não ia falar sobre isto!

 

Pausa

 

Escrevi aqui uma frase num guardanapo que me deram com um número de telefone,

“as borboletas que me colocaste na barriga"

Estou?

Acho que vou ligar para este número.

Esperas por mim¿

 

Linha 3

 

(Barulho de fundo da mesma festa)

-Estou?

Sim, olá. Deste-me o teu número de telefone ainda há pouco. Decidi ligar.

-Estou? Não consigo ouvir, estou numa... allô?

Sim, estou no mesmo lugar! Vamos beber um copo? Consegues ouvir-me?

- Está a ouvir-se muito mal! Quem fala?

Esquece.

 

Linha 1

Estou?

(Barulho da mesma festa, música cry me a river)

 

 









 

Apontamentos para um melhor entendimento da solidão_

 

Linha 1

 

Doem-me os braços

Tiraram-me o sangue todo esta manhã

Não me fazem falta os braços

Já o sangue é que me tira do sério

Se me doesse o coração alguém me vinha tirar as mãos?

Ficar sem os olhos é privaram-me de kilómetros de corpo

Andar às cegas até ao caixão

Cruz Credo

Ou ter alguém que morra no meu lugar

Pera lá que tenho aqui outra chamada

 

Linha 2

 

É de levar as mãos à cabeça

Vejam lá se se lembraram

De me cortar o pescoço?

Não me faz diferença a forma como se aproveitam do meu sangue

Mas imagino que sangrar dos dedos não seja bonito

Pinga tudo

As folhas pegam

O sangue que se transmite é uma loucura

É assim que se diz, transmite?

Não não, transfusão faz-se com a boca

As articulações continuam

Mesmo que troque as mãos pelos pés

Tenho que desligar que tenho outra chamada.

 

Linha 1

 

Sim sim, a morte é como todas as outras coisas que faço sozinha.

Não te esqueças, quando me encontrarem o cadáver já sem vida,

Assinalem a minha partida com alguns dias de antecedência. Desde O dia em que comecei a morrer.

 

(resposta abafada do outro lado da linha)

 

Tens a minha palavra!

Não te disse?

Foi a única coisa que não me tiraram

Pensei em deixar um bilhete

Mas sem o corpo não me consigo mexer.









































 

Linha 1

 

- Estou?

Estou.

- Sou eu.

Diz.

- Queres fazer amor?

Agora?

- Perguntas como se houvesse o agora e o depois?

Nao. So temos o agora.

Até porque as 6 seis tenho consulta no dentista.

- Em minha casa ou na tua?

Quem é que te disse que eu estou em casa?

- Nao estas?

Estou, mas quero sair.

- Muito bem... vem ter a minha casa.

Quero sair de ‘casas’. Nem a minha, nem a tua.

- Vamos para o meio do mato.

Sim. Traz as galochas.

 

(gargalhada)

 

- Nao me importo minimamente em ver-te so de botas, prensada com peso em cima capo.

Sim, eu dou muito boa aparência aos acessórios...

- Diria mais, reconheço-te uma reputação imaculada. Qualquer trapo ou pixebeque se reinventa se fores tu a usar.

E assim que gostas de mim? Imaculada?

- O desleixo não te assiste.

Eu sei o que tu queres...

- Sabes?

Sei.

- Diz-me.

É melhor seres tu a dizer.

- Em palavras minhas ou tuas?

 

Pausa

 

- Pronto, eu levo-te a jantar.

Olha que isto assim torna-se fácil.

- Ah sim? E se estivermos a falar do teu restaurante favorito, naquela mesa virada para o mar pela qual tens tanto carinho?

E isso que julgas? Que tenho carinho pelo momento?

- Nao sou completamente burro.

Nao, de maneira nenhuma, Es astuto.

- Para, estragas-me com mimos. (sorriso na voz)

 

Silencio

 

Queres ir jantar ou fazer amor?

- Perguntas como se houvesse exigência de acontecer um em exclusivo?

Decide tu.

- Quero fazer amor.

Tá bem, então vamos comer qualquer coisa.

 

*

 

Linha 2

 

Mensagem de voz:

 

Tens um embrulho em cima da cama.

Reservei o nosso quarto de hotel.

Nao saias sem o colar que está na caixa vermelha.

Segue as pistas. Deixa-te levar.

 

(passa uma brisa na cortina acetinada que permeia a janela alta. Surge um rasgo de azul, uma nesga de mar.

No áudio da mensagem um bando de gaivotas.)


 

Linha 1

 

Estou sim, boa tarde?

- Estou, estou.

Boa tarde. Tenho uma consulta hoje marcada com o Dr. Cabral para as sete e meia. Quero reagendar, por favor.

- Com certeza, tem a amabilidade de me dizer o seu nome?

Nao, por acaso nao.

- Como?

Nao tenho.

- Desculpe, como assim?

Nao tenho nome. Se tenho, falha-me por completo.a memória.

 

Silencio

 

- A Sra. Sente-se bem?

Sim, lindamente.

- Bom, vamos lá saber, como e que fez a marcação?

Da consulta?

- Sim.

Por telefone.

- E falou com quem?

Consigo.

- E o seu nome?

Diga-me a senhora.

- Olhe que se isto e alguma brincadeira, nao adianta perder mais tempo.

Perder tempo? A senhora nao sabe o meu nome, mas sabe o que e perder tempo?

Olhe... de-me só um momento, aguarde em linha sim, não desligue.


 

Interrompe a chamada na rede fixe e fala ao telemóvel:

 

olha-me esta doida.... risos. Ja viste isto?! Opah, só a mim... risos. Vais jantar com quem? Aí, conta lá!.... risos bem tenho que ir que isto hoje está impossível. Depois conta-me tudo. Vou despachar a outra maluquinha.


 

Linha 1

 

Faca do peixe directa a jugular.

Impiedosa.

Traço espesso de sangue a fazer mancha no soalha flutuante. Um frasco de perfume entornado.

 

Musica maestro.


 

Anouar Brahem - Le Pas du Chat Noir

09. Les Ailes du Bourak






























 

Capitulo Primeiro

Acreditar: replicas de um terramoto






















 

Ele olha para o telefone numa das mãos. Esta a caminhar por uma rua principal de um vilarejo.

A luz recortada pelos telhados franzinos. A sombra das telhas a razar do topo das cabeças, num cone afunilado pela extensão do passeio.

 

Ecra do telefone: 11:15

 

A solidão criteriosa de quase meio dia.  A rotina de desconhecer o uso que se faz dos horarios.

A miúda que nao lhe sai da cabeça.

E um daqueles veroes

que pode perfeitamente

se tornar, no começo do resto todo de uma vida.

 

Poucas pessoas, a antecipar a hora do almoço. Entregues a rotina primária do ócio, pequenas fases de entreludio, parcamente desprotegidas.

 

Folheia um jornal local. Encontra, perdida pelas datas e categorias dos classificados, a seguinte mensagem:

‘O que nao pode faltar e amor. Mesmo depois ‘do que aconteceu Ofélia.’

 

Experimenta um chapeu. Pequenas bancas de bugigangas turisticas. Da uma vista de olhos no expositor de grosso arame, pensou em mandar um postal para um amigo antigo. Depara-se com um aroma a cantina.

 

Distrai-se como pode, com precisão através de tarefas quotidianas, mas o que ele está e a espera de um telefonema. Na expectativa.

 

Olha para o telefone.

Nao ha noticias.

 

- o que nao pode faltar e amor. Mesmo depois ‘do que aconteceu Ofélia.





















 

As vozes que se vão ouvir nesta chamada sao devido a um telefone mal desligado, em cima de uma mesa de refeitório. Alguém ouve a chamada através de uma escuta.

 

Linha 1

 

1- ...Parece que te vão dar alta.

 

0- Para quê?

 

1- Para ires a casa no Natal.

 

Silêncio

 

0- Não me parece.

 

1- Disse-me o médico hoje de manhã.

 

0- Sim, mas eu não vou.

 

1- Se o Doutor diz que tens alta é porque estás bem.

 

0- Se eu estou bem é porque tu não estás.

 

1- Pelos vistos tornaram-se admissíveis. Lá fora já toda a gente vive com isso.

 

0- Em casa?

 

1- Em todas as casas. Todas as famílias já têm pelo menos um.

 

0- E famílias já todos têm?

 

Silêncio

 

1- Ainda nos culpas por não te compreender?

 

Pausa

 

0- A Culpa, sempre a Culpa, a Culpa, a Culpa, a Culpa, SEMPRE A CULPA

1- Pára.

 

0- Se queres que pare com a culpa porque me perguntaste por ela? Eles não me estão a dar alta, dão-me licença. São tão civilizados como vocês.

 

1- Podias dar uma trégua, acho que nem tu vais gostar de passar o Natal sozinho.

 

0- O problema começou nas tréguas que dei aos teus ouvidos, a ti e a todos os outros, os «lá de fora como» tu os chamas.

Vocês é que estão todos aqui dentro. À espera que os  ponteiros se partam como alfinetes brancos que pastam cheios de orgulho. Porque é isso que vocês fazem, estão à espera da hora das visita.

 

Enfermeira - Hoje está particularmente calmo. Já reparou?

 

1- Os tios desejam-te as melhoras.

 

0- Sim, de longe, foi o que eu disse, se não passam de visitas a visitados.

 

1- Têm uma tremenda pena de ainda não te terem vindo visitar…

 

0- Uma tremenda pena, claro. Algum dia te hei-de passar uma agulha pelo braço e ter a tremenda pena de não voltar a acordar.

 

1- É complicado ver a terra prometida destruída.

 

0- Não te preocupes, é mais iminente o vosso fracasso

 

1- Pedi para te reduzirem a medicação, mas se continuas assim não tenho escolha.

 

0- Não há rigorosamente nada que me possam fazer. A licença que vieste dar-me eu não a quero tomar.

 

1- Então não vens mesmo a casa?

 

Pausa

(Entra num estado de choque aparente e deixa de responder)

 

Enfermeira - João?

1- Não me respondes?

 

Silêncio

 

1- Porque não me respondes?

Enfermeira - João?

 

Enfermeira – João responde ao teu irmão por favor.

 

1  - João?! Responde por favor!

 

Enfermeira – João quem é este senhor?

 

1 - Sabes quem eu sou?

 

0 - Não.

 

Enfermeira - E aquela senhora? (apontando para uma moldura na mesa de cabeceira) Sabes?

 

0 - Não sei, não sei

 

Enfermeira - Como é que o senhor se chama?

 

0 - Desamarrem-me

Enfermeira - Como é que o senhor se chama João?

 

0 - Olha vem lá um barco…

 

1 - É a esposa e a filha. (irmão para a Enfermeira)

 

0 - Francisco

 

Enfermeira - É Francisco Dias?

 

0 - Se eu disser solta-me?

 

Enfermeira - Solto sim senhor

 

0 - É Francisco é. O outro nome e so uma questao de saber pensar em grego moderno.

 

Enfermeira - E esta senhora?

 

- Não sei.

 

Enfermeira - Como se chama a sua esposa?

 

- Concordia.

 

Enfermeira – Não, Concordia é o nome da sua filha. Como se chama a senhora João?

 

- Só sei o nome da criança. Desapareceu a caminho da glória, tinha os seus sete anos... nunca mais ninguém a viu.


 

Silencio



 

Linha 2

Encerra o Capítulo acima descrito como ‘’ Capitulo Primeiro

Acreditar: replicas de um terramoto”


 

A conversa nesta linha está a acontecer pelo corredor, por alguém que acaba de sair do quarto ao lado do qual, se passa a conversa acima.

 

Estamos a apanhar a conversa a meio:


 

...


 

2 - Escuso de mentir?

 

1 – Sim, de me tentar enganar.

Deixa que te conte, o veneno que desperdiçaste na minha bebida matou a enfermeira.

 

2 – Estás a falar das minhas influências?

 

1 – Não, estou a falar dos teus maus hábitos.

 

2 – Que grande estima tens por aquilo que faço.

 

1 – Estimo o que os outros são, jamais aquilo que fazem.

 

2 – Os outros são consequências, resultados da minha boa vontade.

 

1 – Pela maneira como o dizes, levas-me a pensar que és uma vítima da vida.

 

2 – Estás a fazer confusão. A vida tem várias dívidas comigo.

 

1 – É o que faço com mais frequência.

 

2 – Cobranças?

 

1 – Não meu bom irmão, confusão.

 

2 – ah e com que perícia! É a tua mestria mais encantadora!

 

1 – E vã a glória da tua boca.

 

2 – Um ataque tão sincero só pode ser digno de privilégio.

 

1 – Pára com os rodeios!

 

2 – Que queres tu que eu faça?

 

1 – Dispara! Conta-me a verdade!

 

2 – Ele não fala, o que conta a Verdade.

 

1 – Pois desta vez vai falar.






 

2 – Não tem nada para te dizer.

 

1 – Então porque não se cala?

 

2 – Tem um trabalho a cumprir.

 

1 – Revelações?

 

2 – Castigos!

 

1 – Não te fazia tão religioso.

 

2 – É patológico, não será por arrependimento.

 

1 – Conheces-te assim tão bem?

 

2 – Como à palma da mão.

 

1 – De uma mão qualquer!

 

2  - O que queres dizer com isso?

 

1 – Que é melhor dizeres a verdade antes que se faça tarde…

 

2 – Para te fazer a vontade?

 

1 – Para te redimires dos teus pecados.

 

2-  Os meus males ainda te encantam?

 

1 – Nunca tive essa vaidade.

 

2 -  …E se me dissesses antes como se muda o passado?

 

1 – Muito bem, mas previno-te, estás velho para estas viagens.

 

2 – Já me viram assim muitas cidades…

 

1 – É assim que imaginas o que aconteceu?

 

2 – Talvez o passado não seja muito diferente.

 

1 – Ou talvez as cidades não te vejam como antigamente.

 

2 – Já não me conhecem.

 

1-  És demasiado imprevisível.

 

2 – Atalhos de condenado.

 

1 – Os corvos vêm sempre pousar ao nosso telhado…

 

2 – Pouco me importa onde vão pousar os corvos, desde que não me acordem.

 

1 – Tens o sono leve?

 

2 – Não, nada me acorda a não ser o barulho das asas. Não as aguento.

 

1 - Tens duas hipóteses:

‘Ou te entregas ou fazes tempo.’










































 

Diz numa lapide, ao fundo:









 

Das últimas coisas que os pássaros cantam sobre a minha cabeça

Antes dos canteiros reservados e da manhã suculenta se levantar

Nas escadas velhas do meu tumulto

Com o cheiro a madeira fria de prédios que já arderam.

Um crepúsculo ou coisa que o valha

Aquele que de vós consiga medir a minha angústia,

que me traga o manual da moral





















 

Duas senhoras falam ao telefone, apesar de estarem as duas sentadas no mesmo banco de jardim


 

Linha 2

 

- Não faz ideia de quem morreu a semana passada.

- Não me diga… o miúdo lá do prédio que partiu há umas semanas para a guerra, não foi?

- Esse também… mas é um óbito estritamente passional o que lhe conto.

- Então deixe-me pesar os acontecimentos, hum…  a menina do violino atropelada pelo tractor do latifundiário?

- Não.

- O homem do lixo na debulhadora da família, adquirida com propósitos desconhecidos?

- Não.

- Aquele jovem das cartas, com assobio servo dos motivos que levaram a namorada a suicidar-se na fila do pão? Ou o avô das gémeas tristes? Ouvi dizer que adormeceu na tarde do furacão.

- Nenhum dos quais.

- O talhante demente no lamentável incidente que vitimou a esposa, justificando-se que tinha discutido com uma das suas facas?

- Isso é um acontecimento da História! Falo de um simples alguém… uma pessoa discreta.

- Sabe que debaixo da terra passam todos despercebidos. Trato daquele jardim há muitos anos e nunca se ouviu um pio lá embaixo.

- No outro dia tive que comer uma… a minha vizinha do lado. Não se calava, levava os serões em gritarias infernais com a descendência, a criança pouco ambiciosa.

- Estava boa de sal?

- Sim, mas faltou-me coragem para lhe comer o fígado.

- Não se culpe… Já em miúdo deixava ficar a gelatina.

- Aquela palavra que engoli sem mastigar, atormenta-me por dentro sabes?

- Pois com certeza, neste caso só podia ter sido alguma coisa que comeu.

- Pois. Só podia.

- Quem?

- Como?

- Quem é que morreu?

- Eu.

 

Barulho de telefone interrompido:

Tu tu tu tu tu tu tu tu

Tuuuuuuuuuuuu

PIPIPIPIPI

 

Ambas as senhora pousam o telefone ainda a dar sinal ao mesmo tempo, num exercício compassado. Quando telefone chega a uma das pernas na qual se junta a bolsa, num movimento lento e vagaroso, olham uma para a outra com a mesma cadência a virar as cabeças.

 

Olham nos olhos uma da outra. Ve-se escrito no chao (?), comecou o tempo (referencia ao Cartas).


 

Musica : Anouar Brahem - Le Pas du Chat Noir

10. Rue du Départ


































 

Um rapaz refastelado para dormir a sesta depois de um almoço farto em fina tarde de Agosto, decide ligar para a máquina automática que atende o voice mail e gravar uma mensagem de boas vindas. Adormece e o telefone fica a gravar, a tarde aumenta em busca de bruma.

 

Mensagem de boas vindas gravada:

 

CopyKat Killer - O Eterno retorno

O Anjo pendurado com Justiça. A casa. A noite de inverno já é de manhã. Vou sair, não me posso esquecer das chaves do carro. Assim se sabe que passam as horas. Os dias. As semanas. Melhor parar por aqui. Parei para tirar uma fotografia, ao retrato do relógio atrasado. Certo dia parou. Repara no passado antigo. O passado está atrasado. Estou pronto. Muito pára este personagem, reflete o leitor parado para observar. Olhos nos Olhos. Quem se mexer perde. Traga uma taça e duas colheres. Dividimos a prata. Traga um cálice e duas mulheres. A que sobrar volta para trás. Rápido que a noite toda que tinha vem a caminho. Diz que vem para cá. Logo agora que aprendia a estar sozinho contigo. Estou a sair ou acabei de entrar? Leva as chaves. Sair não sair, pode custar. A casa. Não me posso esquecer. As horas a passar. Certo dia numa fotografia. Um personagem volta. Olhos nos Olhos. Rápido que não tarda é de manhã. Diz que vem para cá. Quem se mexer perde. O Anjo da Justiça..


 

Midori Takada - Through The Looking Glass.

Ao minuto ‘31 a cacofonia torna-se um claro baralho de sino a dar as 7 : 3 0 da tarde.

 

Sai um jovem de uma igreja, olha para o telefone numa das mãos.

‘A miúda que nao lhe sai da cabeça.

E um daqueles veroes

pode perfeitamente

tornar-se, no começo do resto todo de uma vida.’

 

Uma mulher a sair de um consultório medico, vai ao telefone, prestes a dar-lhe um valente encontrao:


 

Linha 1

Risos estridentes.

- Ai cala-te, sabes la o que eu passei!

Gargalhada

Silencio

- Achas?? Ele desapareceu! Depois só quando me vinha embora, e que consegui ver um vulto a entrar na água. Isto ja la de cima da ravina, nem as escadas conseguia ver bem de tao escuro que estava.

Gargalhada

- Deixei-o lá claro, que querias que tivesse feito? Tas parva! Achas que se soubesse o nome dele o tinha lá deixado?! Nao tava assim tão bêbada.

Barulho de um carro ao atravessar a estrada

- Olha – Diz com amadurecido desinteresse.

- E se fossemos jantar naquele restaurante que tu tanto gostas?

 

(resposta abafada do outro lado)

 

- Como assim vais-te matar?

- Ai para que parva, não tem graça nenhuma...

 

Pausa, Silencio

 

Por favor, nao cometas nenhuma loucura.

Estou a caminho de tua casa.

 

Ouve-se um  trautear do outro lado:

 

- Engraçado que nunca tinhas usado essa palavra... Cometer.

Por favor, nao desligues. Fica comigo ao telefone.

 

A mulher prende o telefone entre a cara e o pescoço para  tirar as chaves do carro da mala.

Abre a porta. Quando fecha olha pelo espelho retrovisor, notando um céu ameaçador de tantas variações de cinzento. Ao telefone diz que está muito bonito. O tom de voz mudou completamente, ouve-se uma voz cheia de critério, repleta de carinho.

 

Comeca a chover. Torrencialmente.

Dentro do carro, entre o sonido peremptório das gotas de chuva e o pára brisas em velocidade maxima,

 

Ouve-se o começo de uma música:

Hiroshi Yoshimura-Green [1986]     Minuto 15/16

 

Olha nao sei o que dizer, por isso vou contar-te uma história estúpida. Sabes que a minha vida quer queiramos quer nao, tenho sido preenchida por futilidades. Mesmo que nao saiba bem o que as palavras por vezes querem dizer, acho que te vais rir de mim, como fazes sempre. No outro dia estava a sair da brasileira que me faz as unhas, olha um máximo, fiz uns desenhos com estrelas que ficam para la de giros, quando estou a sair claro vinha a falar ao telefone com Beca e nao vi um senhor que estava logo ali, olha...  PUMBA

Um encontrão que ia desmontando o velho! Mas acho que ele também estava a olhar para o telemóvel. Depois daquela irritação inicial, dei por mim estava a beijar o homem de tao fofo que ele era. Achas isto normal? Quando por acaso lhe perguntei...

 

- Olha peraí só um bocadinho que vou ficar sem rede, tou a entrar num túnel

 

Luzes sucedem-se no vidro da frente, fluorescencia que subentende a chegada da noite

                                                           fluorescencia

                                                          fluorescencia

                                                         fluorescencia

                                             

 

O túnel afunila a imagem ao ponto ínfimo de um tubo de ensaio que se enche de agua, a unica coisa que se discerne no ponto de luz e um pássaro.

 

                                                            

                                                        fluorescencia

                                                       fluorescencia

                                                      fluorescencia


 

Surge ilustracao da Susanna Majuri

























 

Ouve-se a chuva a bater outra vez de encontro ao cenário.

Entre o arvoredo negro se desvendam dois corpos nus, completamente encharcados, a fazer amor em cima de um carro.

 

Abre o plano em camera lenta.

 

Dois seres carnivoros.

Duas almas caridosas entregues ao sexo selvagem.

Naquela relacao, apenas o resto do mundo se pode sentir sozinho.

 

Protegem-se um ao outro como se a vida dependesse disso.

E dependia...

































 

Linha 1

 

- Estou? Estou? Desculpa, acabei de sair do tunel.

Estás-me a ouvir? Consigo ouvir-te a respirar.

Estas bem? Pareces-me ofegante.

Estou quase a chegar. Aguenta so mais este bocado.

Conto-te o resto do meu episódio parvo quando chegar, sim?


 

Mete as chaves para abir a porta do apartamento.

Assim que olha para cima vê um bosque denso e encharcado como se de um diluvio se tratasse.

Cheiro a terra molhada, suor de madeira, corpos carentes, lâmpadas apagadas ainda quentes.

Encontra umas galochas, olha em redor.

Não há vestígio de uma única pegada, nem da mais pequena mortalidade...
































 

Linha 1

 

- Funerária Cabral e Filhos, boa noite.

Boa noite.

A minha melhor amiga morreu.

Não sei o que fazer…

- As nossas mais profundas condolências.

Eu diria sentidas.

- Como?

Sentidas. Eu diria, as mais ‘sentidas’ condolências.

- Como preferir. Em que podemos ajudar minha senhora?

Não sei muito bem. E a primeira vez que me deparo com uma situação destas.

- E que situação seria essa minha senhora?

Acabei de lhe contar, a minha amiga… cheguei aqui a casa e vejo isto… Não esperou por mim.

- A senhora também planeava morrer?

Desculpe?

- Se a senhora tem alguma coisa contra a possibilidade de estar viva?

Desculpe, com quem é que eu estou a falar?

- Aqui nenhum de nós tem nomes.

 

Pausa

 

Que raio de conversa vem a ser esta?

 

Interrupção para raciocinar

 

Então como e que vocês se identificam uns aos outros?

Isto por acaso não estará relacionado com aquele velho que me deu um encontrão não?

- Identificamo-nos pelas ideias.

Ah pronto, e que aquele senhor veio com uma conversa muito esquisita, a dizer que o mundo ia acabar e que a última estação do ano seria o Outono…

- Por minha senhora, acalme-se. Nos vamos dar inicio aos preparativos,

Para o Outono?

- Para si.

Para mim?! E a minha amiga?

- Já não há muito que possamos fazer por ela.

 

Pausa

 

- Como se chama a falecida?

Anima.

E a senhora?

Não me recordo.

- Quer saber?

Sim… quer dizer, não sei. A importância dos nomes baralha-me. Fico meio deprimida. Quando aqui cheguei, vi a Anima no chão, percebi que era tarde demais. Nem tanto pelo sangue a fazer caminho pelos veios da madeira, nem tanto pelo ambiente húmido das paredes, antes uma tremenda atmosfera de ascensão. A solidão perfeita.

Percebi que era tarde demais. Para me lembrar do meu nome.

- O teu nome e Katharsis.


 

“Para suscitar a catarse era preciso que o herói recolhesse frutos do pátio da escola e levasse para casa a fim de comer junto com os outros heróis, diz Aristóteles.

 

Passa o tempo

Uma mãe prepara um filho pequeno para a escola, ainda manha escura.

Esta a falar ao telefone enquanto prepara a criança.












 

Linha 1

 

Ainda não tirei o colar. As pérolas foram feitas para adornar este pescoço.

 

Silencio

 

Uma Crianca aparenta ter uns 4\5 anos. Fórmula frases ainda numa procura de palavras.

Interrompe e pergunta: Mae? Qual e a distância entre mim e Júpiter?

 

Ouve-se risos da mae ao telefone que despercebidamente questiona a criança

- Diz? Não percebi o que disseste.

Continua ao telefone a falar sobre um encontro sexual e ao filho vai dizendo que nao sabe, nao percebe.

 

Criança – Preciso de saber qual é a distância que me separa de Júpiter.

 

Tenta concentrar-se novamente na chamada telefónica, mas a pergunta não lhe deixa espaço na cabeça para pensar em mais nada e diz para a pessoa que tem ao telefone:

 

Olha dá-me um segundo que o meu filho precisa de ajuda.

 

Criança – Um segundo não vai chegar.

(diz a criança a olhar pela janela e a balançar os pés)

 

- Como assim filho? Qual e a distância que vai daqui ao planeta Júpiter?

Criança – Apareceu uma senhora nas minhas imagens da noite.

Chamada Europa.

 

- Nos teus sonhos meu querido?

Criança - Pelos meus cálculos iniciais, prevejo que a distância entre Júpiter e a Terra varia entre 628 milhões de km e 928 milhões de km.

 

- Longe que se farta.

(Responde a mãe esboçando um sorriso)

Criança - És tão ingênua mãe, por vezes desconfio que possas vir a ser mortal.

Dizer que 778 milhões de km é perto ou longe é muito relativo. Tendo em conta que o valor aproximado de um único ano luz sao 10 trilhões de quilômetros

 

Continua

 

Esse homem que tens contigo ao telefone e meu filho. Em breve nada o podera salvar.

 

(Para o tempo que se iniciou nas senhoras que falam no banco de jardim)


 

(esta quadro termina no Pátio da escola) (no cartaz: o meu bairro antigo.) Ele ve de uma janela de hospital um Pátio de escola no edifício ao lado. Baloiço giratório com um cesto de fruta ao centro parado no seu próprio eixo. Quanto mais o baloiço gira, mais o cesto parece parado. Barulho de recreio.

 

Ouve-se pelo barulho do pateo um historia pelos altifalantes que acompanha com se fosse um dia perfeitamente normal o intervalo das criancas. O barulho da escola faz fade out lento e so se ouve a voz de uma mulher.

 

Europa no sonhos:

 

  • Havia um homem que media os sons da terra. Nos confins do deserto, pela aridez de lagos secos e cidades abandonadas, andava ele a gravar a melodia de um planeta. As vezes temos medo do escuro, das solidoes que a noite encerra. Sinais de repouso elementar.








 

Esta criança e saturno, o homem ao telefone júpiter, a mulher anterior Anima e o rapaz da igreja Cupido. Perceber a relação com constantinopla, nova roma

Perceber o quadro e relação com os pintores espanhóis

 

Psyche's Two Sisters by Fragonard – Eros

Europa e o touro. Por Gustave Moreau

antonio canova – Veneza






















 

Linha 1

Boa dia/tarde/noite, o meu nome e xxx

Estou a ligar da Cabral experiência de vida e limitada

Tenho o prazer de estar a falar com xxx?

 

  • Resposta

 

D. xxx e uma altura conveniente para trocar algumas palavras sobre a oportunidade fantastica que temos para si?

 

  • Resposta

 

Com certeza, serei breve. Estamos a promover uma campanha na qual, apenas alguns clientes exclusivos e selecionados, tem acesso a um concurso com a possibilidade de se candidatar a uma viagem, com tudo incluído, numa data por si determinada como sendo do seu agrado.

 

Silencio

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